quinta-feira, 13 de maio de 2021

Os linces-ibéricos são os protagonistas de um projecto ambicioso de reprodução em cativeiro e de recuperação de habitats em Portugal

Foto: © Ricardo Lourenço
O Lince-Ibérico (LYNX PARDINUS) é uma espécie de felino em vias de extinção. Actualmente considerada a espécie de felino mais ameaçada do mundo e o mamífero carnívoro em maior perigo na Europa, encontra-se classificado como espécie em perigo crítico de conservação em Portugal e Espanha e pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).
Acordo em sobressalto com uma mensagem. Miguel Campos Montero, fotógrafo de natureza Espanhol, dá-me notícias de Platero, um macho jovem, de quase 3 anos, ícone do Parque Nacional de Doñana. A mensagem é breve e trágica: “Platero morreu esta noite.”
Um ano antes, em Agosto de 2019, iniciara os primeiros contactos para tentar fotografar o lince-ibérico. As perspetivas não eram animadoras. Apesar de a população aumentar de ano para ano, as poucas centenas de animais espalhados pelo Sul da Península Ibérica, as restrições de acesso ao seu território e o próprio comportamento da espécie eram factores que me deixavam pouco confiante no sucesso da operação. Felipe Gómez Muñoz, um vigilante que diariamente faz a monitorização dos linces na Extremadura, é taxativo: “Mesmo sabendo que os animais estão no terreno, seguindo o sinal das suas coleiras, posso estar semanas sem avistar um único ‘gato’.” Felipe chama-lhe carinhosamente “gato” pelas parecenças físicas com o gato doméstico, embora, se analisarmos o seu comportamento, o lince-ibérico se assemelhe muito mais a outros felinos de grande porte.
Foto: © Ricardo Lourenço
Surpreendido por uma armadilha fotográfica, este lince juvenil olha fixamente para a lente (e para nós), encarando o futuro com renovada confiança.
Foto: © João P. Santos
Em 2021, os linces-ibéricos correm livremente pelos campos do Parque Natural do Vale do Guadiana. Para chegar a este ponto, a corrida pela sobrevivência teve de superar vários obstáculos.
Foto: © Ricardo Lourenço
Este exemplar, um macho territorial de 3 anos, patrulha o seu território de forma abnegada no coração da Extremadura. A uma centena de metros deste local estão as fronteiras do território de outro macho.
Foto: © Ricardo Lourenço
A sinalização das estradas com ênfase nos pontos negros identificados é uma das várias medidas para combater os atropelamentos.
Foto: © João P. Santos
Os vigilantes do Parque Natural do Vale do Guadiana colocam câmaras de armadilhagem fundamentais para monitorizar as populações de lince-ibérico.
Foto: © Ricardo Lourenço
Alguns dos linces com problemas genéticos ou doenças crónicas, não podendo ser utilizados no programa de cria, servem o propósito da educação ambiental para a preservação e conservação da espécie.
Foto: © Ricardo Lourenço
Com hábitos também crepusculares, é durante a noite que se verifica o período de maior actividade da espécie. Uma câmara accionada pelo movimento captou um momento singular após uma caçada realizada por esta fêmea.
Foto: © Ricardo Lourenço
Os tufos de pêlos nas orelhas assemelham-se a ramos de arbustos e a cauda curta não denuncia a sua presença.
Foto: © Ricardo Lourenço
A pelagem do lince-ibérico tem um padrão mimético que se confunde com a vegetação mediterrânea.
Foto: © Ricardo Lourenço
Considerado um carnívoro maioritariamente crepuscular e nocturno, alimenta-se quase exclusivamente de coelho-bravo. A sua alimentação pode ser complementada com roedores, aves, entre outros.
Foto: © Ricardo Lourenço
Cada animal fotografado é adicionado a uma base de dados, com fotografias identificativas dos padrões de manchas diferentes entre cada lince.
Foto: © Ricardo Lourenço
Em Portugal, Pedro Sarmento estima que “até 2025, possam existir 30 fêmeas reprodutoras e identificar-se mais uma nova área de reintrodução”.
Foto: © Ricardo Lourenço
À partida, poderá parecer que estes animais fogem ao comportamento expectável. São libertados ou nascem em territórios com alguma abundância de coelho, mas, mesmo assim, lançam-se na incerteza de procurar novos lugares. A sua rebeldia é, no entanto, valorizada pela ciência.
Recuemos a 2014. As populações de lince tinham sido consideradas extintas em Portugal e a população global resumia-se a uma estimativa de duas centenas de animais. Por sua vez, esses números não eram tão catastróficos como em 2002, ano em que se contavam apenas 94 exemplares, limitados a Doñana e Sierra Morena. Do ponto de vista probabilístico, o lince estava então condenado e a extinção nem sequer seria uma novidade. Alguns dos felinos mais emblemáticos do mundo estão a desaparecer ou já desapareceram. O lince-ibérico era, em 2002, o felino mais ameaçado do planeta.
De acordo com o trabalho da bióloga e antropóloga Margarida Fernandes, do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), existem indícios de que a espécie já rareava em grande parte do território nacional no início do século XX. Na década de 1950, o declínio do gato-cravo ou liberne (como era outrora conhecido o lince-ibérico em algumas partes do Alentejo) precipitou-se com a mixomatose, uma doença trazida da América do Sul para a Europa, que dizimou as populações de coelho-bravo, a principal presa do lince.
No início da segunda metade do século XX, os linces escasseavam, mas, ainda assim, e apesar de deixarem de ser considerados uma espécie cinegética em 1967, eram caçados numa lógica de controlo de predadores. De forma ambivalente, foram alguns caçadores que deram o alerta em relação às populações de lince. A espiral descendente em direcção à extinção avançava a passos largos. As reformas agrárias da década de 1970, novas transformações drásticas na paisagem e uma nova doença nos coelhos-bravos, introduzida acidentalmente pelos humanos (a hemorrágica viral) na década de 1980, foram os golpes finais para um desfecho trágico.
As sirenes da conservação soaram. Em 1979, a Liga para a Protecção da Natureza e alguns docentes da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa deram o mote para uma das campanhas mais memoráveis da história da conservação em Portugal. “Salvem o lince e a serra da Malcata” – pediam os cartazes. A protecção legal da espécie foi reforçada e, na década seguinte, o serviço que tutelava a conservação da natureza (hoje, ICNF) lançou o primeiro projecto LIFE para avaliar a distribuição da espécie. Foram identificados os núcleos históricos: Malcata, Moura-Barrancos, São Mamede, vale do Guadiana, serras algarvias e vale do Sado. No final do século, os indicadores eram claros: já não existiam animais residentes no território nacional e, em Espanha, adivinhava-se um desfecho semelhante. A sobrevivência de um dos animais mais emblemáticos da fauna ibérica estava presa por um fio fino e frágil.
Entre o milagre e a ciência.
Em 2003, deu-se o ponto de viragem. Com 94 animais em liberdade, os cientistas eram unânimes em considerar que o futuro passava por um programa de reprodução em cativeiro. Foi então criado o primeiro Centro de Cria de Lince El Acebuche, em Doñana. Portugal e Espanha reconheceram que a coordenação ibérica do projecto seria essencial para o seu sucesso.
Entre outros pequenos passos, o ano de 2009 marcou uma etapa preliminar da reintrodução de lince em Portugal, com a abertura do Centro Nacional de Reprodução de Lince-Ibérico (CNRLI). A construção deste equipamento resultou de uma estratégia ibérica com o objectivo da reprodução ex situ que se estende também à criação de outros centros espalhados por várias regiões de Espanha.
De 2002 até final da primeira década do século, os esforços deram resultados tímidos, mas positivos: as estimativas mais optimistas calculavam que haveria 234 animais em liberdade. Foi então definida a segunda etapa no sentido de criar condições para a reintrodução e criação de novas populações para lá das de Doñana e Sierra Morena. Tal como em Espanha, os técnicos em Portugal sabiam que a tarefa seria árdua. A prática levantava questões muito mais complexas e algumas com raízes no passado. As primeiras prendiam-se com a ecologia do animal. Era necessário encontrar zonas com habitat favorável: matagal mediterrâneo caracterizado por vegetação baixa, muitas vezes rodeado por zonas de pastagens. Este tipo de habitat é cada vez mais escasso e mais raro se tornaria se se adicionasse a exigência de uma população abundante de coelho-bravo.
Foto: © Ricardo Lourenço
O coelho-bravo, a presa principal do lince, e muitas outras espécies, beneficiarão em breve de um projecto que identificará as medidas eficazes para a sua conservação, de acordo com Olga Martins, directora regional da Natureza e Florestas do Alentejo.
Os parâmetros foram definidos. Para a criação de um núcleo estável, seriam necessários dez mil hectares mínimos de território favorável que tinham como objectivo criar condições para 50 animais (30 fêmeas e 20 machos). Na primeira prospecção do ICNF, seleccionaram-se três zonas: serra da Malcata, Moura-Barrancos e vale do Guadiana (Mértola).
À partida, pela possibilidade de futura conectividade com as populações espanholas já existentes, as áreas de Moura-Barrancos e vale do Guadiana assumiram a dianteira, embora Margarida Fernandes afirmasse que, historicamente, alguns conflitos com os “carnívoros” eram conhecidos no seio das populações locais e havia receios de o lince ser considerado uma ameaça para a actividade cinegética.
A escolha acabou por recair sobre o vale do Guadiana e, para tal, muito contribuiu o factor vital para a presença e fixação do lince: o coelho-bravo. Segundo os especialistas, para garantir a permanência sustentável do lince, são necessários em média um coelho por hectare no Outono e quatro coelhos na Primavera. O vale do Guadiana, mais especificamente a região de Mértola (a autodenominada Capital da Caça), após os censos realizados em 2013, cumpria esse rácio, mas a propriedade ao largo de Mértola era quase na sua totalidade privada e com uma larga área dedicada à exploração cinegética.
Para o sucesso da reintrodução, era portanto vital garantir que os proprietários, os gestores cinegéticos, os agricultores, os autarcas e a população em geral estivessem receptivos à ideia e dispostos a desempenhar um papel activo. Foram celebrados acordos de colaboração e acções de informação e sensibilização contribuíram para que o lince deixasse de ser entendido como factor de ameaça.
Jacarandá e Katmandu deram o tiro de partida em Dezembro de 2014. Seguiram-se outros oito linces até à Primavera de 2015. Para tal, foi fundamental o trabalho dos centros de cria, como o Centro Nacional de Reprodução de Lince-Ibérico (CNRLI) em Silves. Para lá da tarefa de criar animais em número suficiente para as necessidades das novas populações entretanto criadas (vale de Matachel, montes Toledo, Guarrizas/Guadalmellato), Rodrigo Serra, director do CNRLI e actual responsável pelo Programa Ibérico de Reprodução Ex-situ, realça que o “trabalho dos centros de cria vai muito para lá dos números. A tarefa passa por criar animais em condições muito semelhantes às que vão encontrar na natureza, com o mínimo contacto com humanos”.
Os procedimentos são rigorosos e os protocolos apertados. Cada lince representa um investimento considerável da União Europeia e do Estado português. A responsabilidade é enorme. O director do CNRLI assume-a e devolve com paixão cada palavra sobre o seu trabalho e da equipa que lidera.
Mais do que criar animais tão sensíveis como o lince, é nos centros de cria que se desenvolve uma das incumbências mais relevantes para o sucesso do projecto: a genética. Em 2002, quando as populações de lince estavam restritas a dois núcleos isolados, sabia-se que a variabilidade genética era fraca. Apesar dos esforços para fazer recolha de amostras genéticas de animais taxidermizados espalhados pela Península Ibérica que, permitam num futuro incerto, desenvolver técnicas para melhorar essa genética, o que temos é uma população com fraca variabilidade genética na espécie. Ora, uma população com fracos índices de variabilidade genética está mais susceptível a problemas relacionados com a consanguinidade, doenças associadas e maiores taxas de mortalidade. Assim, nos centros de cria, parte do trabalho passa por garantir a maximização dessa variabilidade, cruzando indivíduos seleccionados geneticamente e reintroduzindo outros que dêem uma resposta diversificada em locais que o justifiquem. Desde 2013, o CNRLI foi responsável pela libertação de 86 linces nos diferentes núcleos populacionais espalhados pela Península Ibérica e prepara-se para dar resposta a uma nova fase do projecto.
Foto: © João P. Santos
As libertações realizadas anualmente nas diferentes populações existentes servem o propósito de diversificá-las geneticamente e aumentar o efectivo populacional.
Em meados de 2015, já se contavam 10 gatos a campear pelos arredores de Mértola e os técnicos sabiam, através da experiência espanhola, que parte do sucesso do projecto passava pelo acompanhamento dos animais no terreno. As áreas de monitorização são amplas e a morfologia do território difícil. Contudo, havia agora um aliado que décadas antes faltara e que assumia nesta fase uma importância vital: a tecnologia. Cada lince libertado está “equipado” com uma coleira e dois sistemas de comunicação, um através de sinal VHF e outro utilizando a tecnologia GSM. Os dois sistemas são alimentados por uma pequena bateria que garante autonomia durante alguns meses. “Todo este aparato não pode ultrapassar 3% do peso do animal”, explica Toribio Alvarez, coordenador do projecto de reintrodução do lince-ibérico na Extremadura (vale de Matachel) que explica pormenorizadamente a importância destes sistemas na localização dos animais, na avaliação dos seus movimentos de dispersão e na dimensão dos seus territórios. Diariamente, todos os animais “equipados” são monitorizados pelos vigilantes que trabalham no terreno, mas há indicadores que só podem ser recolhidos através das centenas de câmaras de fotoarmadilhagem espalhadas pelos territórios. Através delas é possível identificar animais sem coleiras, que podem ser crias ou animais em dispersão. Por outro lado, avalia-se a condição física dos animais do território através de fotografias e vídeos. Cada animal fotografado é adicionado a uma base de dados, com fotografias identificativas dos padrões de manchas diferentes entre cada lince. Todos os anos, entre Outubro e Novembro, são realizadas capturas de animais nascidos em liberdade para que sejam colocados equipamentos de monitorização e assim aumentar a amostra de população rastreada.
Actualmente, devido ao aumento da população, equaciona-se a possibilidade de utilizar a tecnologia LoRa (Long Range) com recolha de dados através da utilização de drones. Mel, um dos linces que reside em parte do Parque Natural do Vale do Guadiana (PNVG), já é acompanhado através desta tecnologia que ainda se encontra em fase de teste.
Quase seis anos após a libertação dos primeiros linces no PNVG, já é possível avaliar o projecto e identificar os actores desta história. À data de fecho desta edição, Portugal conta com aproximadamente 143 linces em liberdade e uma estimativa de 20 a 24 fêmeas reprodutoras. As fêmeas reprodutoras são o indicador-padrão que pode avalizar a estabilidade de uma população e a sua integração no território. São também elas que definem o crescimento expectável da população global. Passados seis anos, o sucesso ultrapassa as expectativas iniciais.
Ilustração de Anyforms. Textos e Infografia adaptada dos originais de Paula Abreu, Margarida Fernandes, João Carlos Farinha (ICNF) para a exposição "No Trilho do Lince-Ibérico", 2014, Castelo de Silves. Fonte do mapa de 2020: Consejo de Agricultura, Ganadería, Pesca Y Desarollo Sostenible, Junta da Andaluzia.
O trabalho do ICNF e das suas equipas no terreno, em colaboração estreita com a administração espanhola, tornaram o projecto de reintrodução do lince-ibérico num dos mais bem-sucedidos projectos de conservação do mundo e um exemplo a seguir para espécies ameaçadas no planeta. Os sucessos obtidos até aqui contaram com um grande investimento das entidades competentes, mas também só foram possíveis graças ao envolvimento e entrega das comunidades que acolheram o lince, tornando-o símbolo das suas regiões.
Numa época em que o interior perde serviços públicos a cada volta que a Terra dá ao Sol, o turismo ganha terreno numa economia local que depende de rendimentos suplementares. O lince abre a porta ao turismo de natureza e actividades ao ar livre. Tornou-se, simbolicamente, parte da identidade de uma região.
Carlos Carrapato, biólogo e técnico do ICNF, identifica outros agentes fundamentais para este sucesso: “Os exploradores cinegéticos e as suas práticas foram essenciais para o sucesso do lince”, diz. “O investimento nas actividades cinegéticas beneficia o felino e outras espécies que dependem directamente do coelho, como é o caso da águia-imperial-ibérica, que também vê os seus números crescer no PNVG.”
Foto: © Ricardo Lourenço
A exploração cinegética, através das boas práticas e gestão eficiente, contribuem de forma indirecta mas decisiva para a conservação do lince-ibérico.
Os proprietários dos terrenos apontam agora com orgulho o facto de acolherem um animal tão carismático e fascinante e são, de facto, merecedores de uma fatia deste sucesso. Estes seis anos de experiência trouxeram aos investigadores um conhecimento inédito sobre a espécie. A crença de que o lince-ibérico, como predador de topo, afasta outros predadores mais numerosos como a raposa, está confirmada, beneficiando assim as populações de coelho-bravo. “Antes do lince, a captura fotográfica de raposas e outros carnívoros nas câmaras de fotoarmadilhagem era constante e assídua. Agora passam-se meses sem conseguirmos identificar uma”, conta Pedro Sarmento, o coordenador técnico do Programa Life Lynx Connect. O lince pode afinal beneficiar a caça, aliviando a competição por presas. Além disso, aprendeu-se também que os linces são bastante mais plásticos no que diz respeito à sua alimentação e que alguns animais mantêm uma dieta à base de ungulados, pequenos roedores e aves.
O Início.
Dirijo-me à comarca de Aljarafe, na Andaluzia. Embora faça fronteira com Doñana, fica fora do território do Parque Nacional. Aqui reside grande parte da população identificada como de “Doñana”. Em 2002, estima-se que existissem apenas 94 linces. Noventa e quatro animais. A esta distância, pensar neste número parece assustador.
O calor não abranda e as cigarras dão ritmo a uma tarde monótona no interior de Doñana. Estamos em Agosto e, a poucos quilómetros deste local, as praias estão preenchidas de turistas. Por norma, com estas temperaturas, os felinos dormem. O dia cai, mas a teimosia dos fotógrafos persiste. A actividade da espécie aumenta ao crepúsculo e, embora a probabilidade de avistamento seja baixa, os intervenientes vivem bem com isso. Não se lamenta um único segundo perdido de praia.
A luz desce e ilumina a clareira repleta de coelhos-bravos que se movem desconfiados. A vegetação é baixa e a área ampla, mas um dos fotógrafos detecta um sinal promissor a uma centena de metros. O “fantasma” move-se lentamente. Descontraído e com a arrogância de quem está no topo da cadeia alimentar, o jovem lince caminha confiante. É Platero.
Foto: © Ricardo Lourenço
O lince Platero, aqui com 2 anos, nasceu em liberdade. A sua atitude confiante, mesmo perante alguns observadores, fez dele um dos linces mais icónicos do Parque Nacional de Doñana.
O coração dos poucos humanos que o esperam dispara. O olhar penetrante revela-se por breves momentos. Está ali para caçar e ignora os observadores. Entrou na fase crítica do seu desenvolvimento. Por norma, os linces com um ano iniciam o processo de dispersão. Têm de procurar o seu próprio território e alimento. Os conflitos aumentam, os perigos espreitam e a incerteza adensa-se. Para já, pode vaguear pelo território dos seus pais (Kilo e Lupa), que ainda o toleram. Contudo, o cenário vai mudar rapidamente e Platero terá de ser autónomo. A complexidade social da espécie é definida por hierarquias bem definidas e estruturadas e territórios bem delimitados. As linhas invisíveis que os linces se afadigam a marcar com dejectos e urina são bem palpáveis e, por consequência, é raro um macho entrar no território de outro. Se o fizer, travará uma luta feroz e só um ganhará. O outro, com sorte, lamberá as feridas e procurará novo território. Porém, é quase inevitável, num território tão competitivo como o de Doñana, que Platero, mais cedo ou mais tarde, dê esse passo.
Em contrapartida, outros evitam essa competição e iniciam longos percursos para longe de Doñana, como foi o caso de Mundo que, em 2016, iniciou uma jornada que o levou a outro país – Portugal. Em Serpa, Mundo encontrou Malva, também ela em dispersão. Nascida em La Olivilla, foi libertada em Mértola (2016) e rumou a norte onde encontrou o parceiro. “Os linces raramente ficam no local onde são libertados”, lembra Pedro Sarmento. “Depois de soltos, inicia-se uma fase em que os animais fazem movimentos exploratórios e, por norma, acabam por fixar-se e estabelecer-se num território na periferia de outros territórios já estabelecidos.” Mas há excepções.
Da relação entre Malva e Mundo, nasceram várias crias, entre as quais Orvalho. Seguindo os instintos já evidenciados pelos progenitores, Orvalho também se dispersou para nordeste até chegar à Extremadura, ao núcleo do vale de Matachel. À partida, poderá parecer que estes animais fogem ao comportamento expectável. São libertados ou nascem em territórios com alguma abundância de coelho, mas, mesmo assim, lançam-se na incerteza de procurar novos lugares. A sua rebeldia é, no entanto, valorizada pela ciência.
Maria de Jesus Palacios, directora de Programas de Conservação da Natureza da Junta da Extremadurada, é a cara do projecto da nova área de reintrodução criada nessa província e defende que animais como Orvalho são extremamente importantes porque, de forma natural, criam corredores de ligação entre as populações existentes e reforçam a variabilidade genética dessas populações. Orvalho é agora um dos machos territoriais de uma população estremenha bem implementada que conta com 169 indivíduos. Para tal, como em Portugal, contribuiu o trabalho hercúleo das equipas que acompanham desde 2015 este processo de reintrodução.
Com determinação férrea e um discurso eloquente, Maria de Jesus fala das adversidades encontradas no terreno e resume parte do sucesso à confiança. “No essencial, foi necessário criar laços e estruturas de confiança com todos os agentes”, diz. “Os acordos de colaboração, na maioria das vezes, geram contrapartidas para os proprietários e para o lince simultaneamente. Essas contrapartidas podem passar pela criação de pontos de água para o gado, para o coelho-bravo e obviamente para os linces. Galinheiros e outras estruturas que servem de abrigo à criação de animais são reforçados, impedindo ataques e conflitos entre homens e linces.”
Comedouros e bebedouros artificiais para o coelho-bravo e abrigos para os mesmos são outras medidas que agradam a caçadores e proprietários e beneficiam o lince. A relação entre a administração, os proprietários, as associações de caça, os exploradores de actividades cinegéticas e os ganadeiros é próxima. Maria de Jesus acrescenta que a relação tem de ser transparente. “A confiança cimenta-se e só nessa base o lince pode enfrentar um futuro risonho, com menos ameaças”, diz.
O vigilante Felipe Gomez Muñoz acompanha-me numa das incursões pelo território do lince. De quilómetro a quilómetro, faz a monitorização e detecta a localização de cada animal no território. Raramente os avista, mas conhece-os como a palma das mãos. Interpreta os sinais que a natureza lhe dá e identifica cada movimento “dos seus gatos”. As antenas VHF dão sinais diferenciados, identificando se o animal está em repouso, a andar ou a correr. Numa das verificações, Felipe identifica um sinal diferente de todos os outros. Quatapuru, um lince que nasceu no CNRLI e foi libertado recentemente neste território, emite um apito contínuo no sistema VHF. Ou perdeu a coleira ou está morto… e os linces raramente perdem uma coleira.
Foto: © Ricardo Lourenço
Felipe Muñoz, vigilante da natureza da Direcção-Geral de Política Florestal de Espanha, faz a monitorização diária dos linces que vagueiam pelo vale de Matachel, na Extremadura.
O alerta é dado às hierarquias e Felipe inicia a triangulação do sinal que demora uma hora. Acompanho-o. O ambiente é tenso. Passada uma hora, o animal é encontrado. Quatapuru jaz a poucos metros de um caminho de terra batida. Por questões protocolares, não nos podemos aproximar. As autoridades são avisadas. Inicia-se um processo de investigação meticuloso que determinará se ocorreu, ou não, um crime. O animal vai ser analisado por peritos e, posteriormente, será feita a necropsia para determinar a causa da morte (concluir-se-á que Quatapuru morreu vítima de uma luta com cães).
A mortalidade dos linces é levada muito a sério, tendo em conta que tem aumentado de ano para ano. “O lince morre do crescimento”, afirma Jorge Peña Martinez, veterinário da Direcção-Geral de Sustentabilidade que acompanha todo o projecto de reintrodução na Extremadura. À medida que as populações crescem, os territórios ficam ocupados e os animais jovens iniciam movimentos de dispersão que, por vezes, os levam à morte por atropelamento. Os linces atropelados são quase sempre encontrados e identificados, mas outras causas como o furtivismo ou a doença podem estar subavaliadas. Os animais mortos a tiro, por laços ou envenenados podem não ser encontrados, mas isso não quer dizer que não sejam reais.
Foto: © Ricardo Lourenço
Os atropelamentos são a principal causa de mortalidade do lince-ibérico. Por norma, a incidência em animais jovens que iniciam os seus movimentos exploratórios é mais comum.
German Garrote, investigador e biólogo da Agência de Ambiente e Água da Andaluzia, estima que o número de animais mortos por abate ilegal se equipare ao número de animais atropelados. As doenças são, por sua vez, outra causa de mortalidade e os cientistas controlam os seus sinais de forma sistemática. Os números de linces com tuberculose são identificados em Espanha, mas de forma residual.
A leucemia felina é outra preocupação. Em 2007, um surto vitimou 13 animais em Doñana e, caso algo falhe na monitorização, um novo surto pode afectar as populações existentes.
Na população do vale de Matachel, como nas restantes populações, as ameaças estão identificadas. As medidas preventivas em relação aos atropelamentos são visíveis. Os pontos negros foram identificados e foram erguidas vedações em redor dos troços mais letais. A sinalização e a vigilância rodoviária complementam o conjunto de medidas tomadas para combater este flagelo. Nos últimos anos, 146 linces morreram atropelados.
Mesmo com estas sinetas de alarme, a reintrodução do lince é um sucesso a todos os níveis. Os números apontam para uma população global de 855 linces (2019), mas os resultados do censo de 2020 podem indicar valores próximos do milhar de animais. Todas as populações criadas através da reintrodução superam os efectivos esperados. A espécie demonstrou resiliência às adversidades, a aceitação social do lince tem-se revelado favorável e o coelho-bravo tem ajudado. E agora?
O futuro.
Em 2020, iniciou-se um novo projecto: Life Lynx Connect. Deverá prolongar-se até 2025 e tem como principal objectivo conectar fisicamente e geneticamente as populações já existentes, através da criação de oito novas zonas de reintrodução com dimensões ligeiramente mais pequenas do que as até então parametrizadas. Os centros de cria assumirão um papel relevante na reintrodução dessas oito novas áreas, seleccionadas através de um estudo prévio que identifica pontos intermédios entre as seis populações existentes e corredores utilizados por linces em dispersão. Serão as chamadas “Stepping Stones” que teoricamente farão as pontes entre as populações existentes e a longo prazo juntá-las-ão num núcleo ou núcleos em boa parte do Sul da Península Ibérica. Além deste objectivo principal, procurar-se-á fazer uma caracterização genética mais pormenorizada das populações, mitigar os pontos negros em estradas onde ocorrem os atropelamentos, apostar na redução de conflitos entre humanos e o lince e aproveitar as novas tecnologias para aprofundar o conhecimento da espécie e acompanhar uma população cada vez maior.
Foto: © João P. Santos
O veterinário Nuno Costa Neves acompanha os trabalhos de captura e monitorização dos linces seleccionados para colocação de novas coleiras de seguimento, no Parque Natural do Vale do Guadiana.
Em Portugal, Pedro Sarmento estima que “até 2025, possam existir 30 fêmeas reprodutoras e identificar-se mais uma nova área de reintrodução”. Globalmente, estão identificadas 134 fêmeas reprodutoras. Os números são animadores, mas o objectivo final passa por chegar a um estatuto de ameaça mais favorável com 750 fêmeas reprodutoras, estimativa que os investigadores julgam poder alcançar em 2034. Para já, tendo em conta a complexidade social da espécie, da fragilidade das populações da principal presa do lince e a perda de habitat, o lince-ibérico continua a ser em 2021 o felino mais ameaçado do planeta.
Regresso a Doñana em Julho de 2020.
Quero fotografar novamente Platero. Ao quinto e último dia da minha estada, finalmente aparece. Como se esperaria, dispersou-se para sul e fixou-se num território, expulsando outro macho mais velho. Fico orgulhoso por ele. Está finalmente com porte de adulto e o território onde se estabeleceu é dos melhores. Fixa-me com os mesmos olhos confiantes. Move-se à minha frente com a “arrogância” característica e ignora-me a ponto de tentar caçar um coelho a poucos metros de mim. O meu fascínio faz-me perder algumas imagens nos segundos em que o contemplei com o fascínio de quem observa um momento raro. Senta-se à sombra de uma oliveira antiga característica do território. Contempla uma pequena depressão do terreno que se estende à sua frente.
Vira ligeiramente a cabeça na minha direcção e fita-me uma última vez antes de desaparecer na vegetação rasteira que o rodeia.
Platero murió. Um mês depois de o ver pela última vez, foi encontrado atropelado numa estrada secundária que definia a fronteira sul do seu território. É um pequeno troço de sete quilómetros. Tristemente, foi o sexto lince atropelado aqui desde 2001. De forma quase imediata e impulsionado pela morte de Platero (o lince icónico de Doñana), nasceu uma plataforma informal de cidadãos (STOP ATROPELLOS LINCE), reivindicando medidas para mitigar o problema. A Junta da Andaluzia e a WWF recomendaram medidas e a Confederação Hidrográfica do Guadalquivir acolheu-as. No dia 3 de Março, foi anunciado um investimento de 370 mil euros em obras de requalificação do troço e um conjunto de medidas para evitar atropelos como o de Platero.
Em quase 20 anos, o lince-ibérico recuperou. A espécie foi resgatada de uma morte anunciada e enfrenta agora novos desafios. No final de contas, o que fez a diferença e sempre fará são as pessoas. O desafio de recuperar o lince, em última análise, é um desafio à nossa capacidade de mudar e ao compromisso que assumimos enquanto comunidade. O grande desafio passa por nós.
Fonte: Os linces-ibéricos são os protagonistas de um projecto ambicioso de reprodução em cativeiro e de recuperação de habitats em Portugal

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Cronologia do estado de conservação do lince ibérico

Gráfico de mortes por ano

Projeto: Causas de morte do lince ibérico

A Reconquista do Lince Ibérico (Jogo)

1.º lugar na categoria “2.º Ciclo” – Agrupamento de Escolas de Vouzela
O Agrupamento de Escolas de Vouzela (EBI de Vouzela), Eco-Escola desde 2007/2008, apresentou um jogo informático intitulado “A Reconquista do Lince”, criado por um professor e por dois alunos do 5.º ano. O jogo, que já está disponível para ser experimentado, ainda vai sofrer algumas alterações por proposta da Fundação IBERLINX que está interessada no projeto e só depois serão lançadas as versões para computador, smartphone e tablet. (versão experimental).